Reprodução: Ucranianos deixam o país e buscam refúgio na vizinha Polônia em razão da invasão militar russa. (Foto: Chris Melzer/ACNUR)
Número de ucranianos em fuga do país já ultrapassou 1 milhão, segundo o ACNUR. No Brasil, descendentes se mobilizam para ações humanitárias
O Brasil regulamentou a concessão de vistos humanitários para receber ucranianos que deixarem o país em razão da guerra motivada pela invasão russa. A decisão foi antecipada pelo presidente Jair Bolsonaro na segunda-feira (28), em entrevista à Rádio Jovem Pan, mas só foi oficializada por uma portaria publicada em edição extraordinária desta quinta-feira (3) no Diário Oficial da União.
O visto humanitário para ucranianos tem um formato semelhante ao que foi aplicado para os afegãos. Além destas, as outras duas nacionalidades que contam com visto humanitário no Brasil são sírios e haitianos, cada qual com uma regulamentação própria.
De acordo com o texto, têm direito ao visto ucranianos e apátridas (pessoas sem nacionalidade reconhecida) afetados ou deslocados pela situação de conflito armado no país do Leste Europeu. O documento vale até 31 de agosto de 2022 e “não afasta a possibilidade de outras medidas que possam ser adotadas pelo Estado brasileiro para a proteção dos nacionais ucranianos e apátridas residentes na Ucrânia”.
Segundo nota conjunta dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, que assinam a portaria, o visto humanitário será emitido pelas Embaixadas do Brasil em Varsóvia (Polônia), Budapeste (Hungria), Bucareste (Romênia), Praga (República Tcheca) e Bratislava (Eslováquia). Caso os interessados já estejam em território brasileiro, devem se dirigir a uma delegacia da Polícia Federal.
Os portadores desse tipo de visto humanitário têm um prazo de 90 dias após o ingresso no Brasil para se registrarem na Polícia Federal, onde ele é transformado em uma autorização de residência temporária de dois anos. Com ela, o imigrante fica liberado para trabalhar em solo brasileiro.
Ao final desse período, pode-se entrar com o pedido de residência por tempo indeterminado.
A concessão do visto humanitário foi vista como um gesto de hospitalidade pelo encarregado de negócios da Ucrânia no Brasil, Anatoliy Tkach. Por outro lado, ele criticou o fato de o Brasil ainda não ter adotado uma postura mais veemente contra a invasão russa — a diplomacia brasileira já condenou a ação militar no âmbito das Nações Unidas, mas o presidente Jair Bolsonaro segue sem fazer o mesmo.
“É um gesto de hospitalidade. Agora os ucranianos têm mais um lugar para onde ir. Mas para parar a agressão nós precisamos fazer uma pressão sobre o agressor. E essa pressão é o que muitos países do mundo já estão adotando. Cortando os laços e isolando a Rússia”, disse ele, durante entrevista coletiva em Brasília na terça-feira (1).
Limitação a nacionais ucranianos e apátridas
Embora vista como positiva, a portaria que regulamentou o visto humanitário para ucranianos também apresentou aspectos que geraram preocupação em especialistas em migração ouvidos pelo MigraMundo.
O principal deles é a previsão da concessão do visto apenas para nacionais ucranianos e pessoas em situação de apatridia, deixando de fora outras pessoas que vivem no país europeu e que sofrem com os efeitos da guerra.
“A Ucrânia é um país formado por diversas nacionalidades. E há muitos imigrantes de outras nacionalidades que lá residem há anos e anos e que, pela literalidade da Portaria, não seriam incluídos na acolhida humanitária ou pelo visto”, destacou Paula Zambelli Salgado Brasil, professora de Direitos Humanos e Constitucional do IDP/SP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa).
Esse aspecto também foi ressaltado por Vitor Bastos, advogado especialista em migração.
“A portaria se espelhou muito na última, dos afegãos, com uma diferença que parece sutil, mas com implicações importantes na prática: ao alcançar somente ucranianos e apátridas, deixa de lado pessoas de outras nacionalidades atingidas pela guerra e precisando de acolhida humanitária. É uma diferenciação importante, que não foi feita no caso do visto humanitário para o conflito na Síria e Afeganistão”.
Outro ponto que gerou ressalvas é a previsão de entrevista presencial para concessão do visto humanitário, que pode ser dispensada a critério da autoridade consular, algo que não estava previsto em portarias que regulamentaram vistos anteriores.
Mobilização pelo visto humanitário
A concessão do visto humanitário já vinha sendo pedida por setores acadêmicos e pessoas ligadas à temática das migrações, à luz do que já foi feito em favor de outras nacionalidades.
A Daniela Alves, especialista em Tráfico de Pessoas, Diretora do Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (CEIRI), lançou um abaixo-assinado na plataforma Change.org para obter apoio a uma
“Percebemos que no geral as pessoas estavam muito mobilizadas sobre o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, buscando firmar opinião, porém faltava canalizar para uma ação concreta que pudesse auxiliar os afetados pelo conflito”, explicou, sobre a criação do abaixo-assinado.
Com a formalização do visto humanitário, a especialista frisou que o próximo passo será garantir a recepção e integração dos ucranianos no Brasil – um desafio que também se nota junto a outras comunidades migrantes no país.
“Este processo ainda apresenta problemas, mas todos eles podem ser resolvidos com maior articulação entre o governo e a sociedade civil. Devemos ainda fortalecer a independência daqueles que estão chegando, fornecendo-lhes informações importantes sobre nosso país, o local para aonde vão, contatos de emergência, abrigos e toda informação básica necessária. Ainda há falhas neste fornecimento de informações estruturadas, mas que também poderão ser sanadas neste processo”.
Descendentes de ucranianos no Brasil
O Brasil abriga a terceira maior comunidade de descendentes de ucranianos no mundo, estimada em pelo menos 600 mil pessoas, a maior parte delas no Paraná.
Em Curitiba, capital do estado e que conta com forte presença de descendentes de ucranianos, foi lançado nesta quinta-feira (3) o Comitê Humanitas Brasil-Ucrânia. O grupo reúne 18 entidades civis e religiosas ligadas à comunidade e tem como objetivo coordenar o envio de ajuda humanitária ao país europeu.
Em Prudentópolis, cidade localizada a 200 km de Curitiba, estima-se que entre 75% e 80% dos cerca de 50 mil habitantes sejam descendentes de ucranianos. Na última sexta-feira (25), a gestão municipal enviou um ofício ao prefeito da cidade ucraniana de Ternópil, Serhij Nadal, se colocando à disposição em receber refugiados do país europeu.
‘’Prudentópolis segue com as portas e com o coração aberto ao povo ucraniano como o fez há mais de cem anos, quando recebeu os primeiros imigrantes que aqui construíram sua história e influenciaram diretamente no modo de vida de nossa terra”, disse o prefeito de Prudentópolis, Osnei Stadler, no documento.
Além do Paraná, a capital paulista e a Grande São Paulo também contam com núcleos de descendentes de ucranianos. A Feira Cultural do Leste Europeu, realizada mensalmente ao lado do Parque da Vila Prudente, conta com atrações artísticas e gastronômicas ucranianas, assim como de outros países da região – como lituanos, russos, búlgaros, romenos, armênios, entre outros.
Ucranianos em fuga
Desde o começo da invasão russa na Ucrânia, no último dia 24, mais de 1 milhão de ucranianos deixaram o país em busca de refúgio em nações vizinhas, de acordo com o alto comissário da ONU para refugiados, Flippo Grandi.
Ainda segundo a ONU, a projeção é de que nas próximas semanas o número de refugiados ucranianos alcance o patamar de 4 milhões de pessoas.
Mesmo antes da escalada da violência por forças russas, a Ucrânia já contava com mais de 3 milhões de pessoas carentes de assistência humanitária por causa do conflito nas regiões separatistas de Donetsk e Luhansk, no leste do país, cuja independência foi reconhecida pelo governo de Moscou.
Matéria originalmente publicada no site migramundo.com (04/03/2022). Por MigraMundo Equipe . Clique aqui para ver o texto original!