No Brasil, o sírio Muhand Aldaas já passou por São Paulo (SP), João Pessoa (PB) e atualmente reside em Porto Alegre (RS). Além da revalidação do diploma, conseguiu também cidadania brasileira. © Arquivo pessoal - ACNUR
Projeto da Compassiva, que conta com o apoio do ACNUR, já resultou em 106 processos concluídos com sucesso desde o início da parceria em 2016
Por Ana Cipriano
No Brasil, o sírio Muhand Aldaas já passou por São Paulo (SP), João Pessoa (PB) e atualmente reside em Porto Alegre (RS). Além da revalidação do diploma, conseguiu também cidadania brasileira. © Arquivo pessoal - ACNUR
Muhanad Aldaas nasceu e se formou em arquitetura na Síria, mas não teve a chance de colocar todo o aprendizado em prática em seu país de origem. Mas, isso não o tirou a vontade de trabalhar e fazer o que realmente gosta. “Parece que é a profissão que escolhe a gente”, reflete. Assim como ele, diversas pessoas refugiadas, quando chegam no país de acolhida, têm o desejo de voltar a atuar em suas áreas de especialidade e trabalhar em suas áreas de formação, mas em muitas situações esse desejo torna-se uma realidade distante.
A inserção e integração ao mercado de trabalho local é dificultada por dois principais motivos: as barreiras linguísticas e de comunicação e a burocracia relacionada à regularização de documentação. Este último, impede que diversos profissionais de outras nacionalidades atuem em setores alinhados às suas formações e faz com que tenham que buscar caminhos que, nem sempre, suprem suas necessidades financeiras.
Foi a partir dessa constatação e dos depoimentos de pessoas refugiadas relatavam em grupos focais realizados pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) que a Compassiva, em 2016, firmou para trabalhar na revalidação de diplomas de refugiados no Brasil para tentar reverter essa situação.
“Nós percebemos que a maioria dos refugiados que vinham da Síria, Iraque, Palestina e de outros países da região, por exemplo, já tinham diplomas e experiências de trabalho muito significativas, mas não conseguiam reconstruir suas vidas aqui como era antes”, afirma André Leitão, presidente executivo da Compassiva.
Muhanad foi um dos beneficiados pelo projeto da Compassiva com o ACNUR. Formou-se em arquitetura na Síria, mas não teve tempo de colocar em prática tudo o que aprendeu ao longo da graduação, após o avanço dos conflitos no país. Antes de chegar ao Brasil, ele morou na Argélia, onde pôde trabalhar por um tempo na área, mas sem o direito de assinar os projetos como arquiteto, porque não tinha carteira assinada. Aqui, as coisas não foram muito diferentes no início por não ter um diploma válido em território nacional. Por meio de amigos da comunidade árabe, o sírio conheceu o trabalho de revalidação da Compassiva e iniciou o processo junto à Universidade Federal Fluminense (UFF), universidade que integra a Cátedra Sérgio Vieira de Mello do ACNUR.
Após a entrega de toda a documentação necessária e a apresentação de um projeto final sobre os programas governamentais relacionados à situação de habitação de interesse em seu país de origem, Muhanad conseguiu revalidar seu diploma.
Mas, um processo que deveria ter durado não mais do que 180 dias, acabou se estendendo por quase dois anos, entre 2015 e 2017. Mesmo com portarias que sejam reconhecidas pelo MEC, a documentação ainda é uma barreira para muitos requerentes. Além disso, muitas instituições de ensino superior falham em prestar atendimentos humanizados e sensíveis à causa dos refugiados.
Os processos de revalidação de diplomas também acabam encontrando limitações acadêmicas. Atualmente, apenas universidades públicas brasileiras são elegíveis para este processo. Segundo André, uma das lutas da Compassiva é que universidades particulares reconhecidas pelo MEC tenham permissão para emitir a regularização dos documentos, o que aumentaria a disponibilidade de cursos e facilitaria a busca por equivalência acadêmica com o diploma de outros países.
Revalidação e independência
Ter um diploma reconhecido no Brasil pode significar para muitas pessoas refugiadas a oportunidade de conseguir independência financeira e garantir que suas competências sejam assimiladas nos novos espaços.
“Atualmente, eu não estou trabalhando como arquiteto, mas quando chegar o momento eu vou precisar do meu diploma. Eu acredito que todas as pessoas deveriam ir atrás da revalidação e eu agradeço muito a Compassiva por ter facilitado esse processo”, afirma Muhanad.
Em um episódio do Com.partilha – podcast desenvolvido e apresentado pela Compassiva -, que lançou um novo episódio sobre os bastidores das revalidações, a refugiada venezuelana Ana del Valle conta um pouco de sua trajetória com a regularização dos documentos, que está quase finalizada.
Ela tem formação em matemática e chegou ao Brasil em 2017. “Ainda quero exercer minha profissão. Eu tenho mais de dez anos de experiência em ensino. Quando cheguei no Brasil, a intenção era trabalhar na minha área, mas eu não tinha conhecimento de como era a dinâmica de trabalho aqui”, comenta Ana.
Mesmo ainda estando em busca de uma recolocação no mercado de trabalho em sua área de especialização, a professora não pensa em voltar à Venezuela neste momento. “Eu gosto da diversidade que existe aqui. Alguns processos são ainda rígidos e burocráticos, mas as diferentes lutas sociais que existem aqui são muito interessantes. Essa liberdade de pensamento é muito importante e é algo que não existe muito no meu país.”
“É essencial que cada vez mais pessoas refugiadas tenham acesso ao serviço de revalidação de diplomas oferecido pela Compassiva desde 2016, em parceria com o ACNUR. Além de garantir que as pessoas refugiadas possam reconstruir suas vidas com maior estabilidade, ter um diploma válido no território brasileiro facilita sua inserção no mercado de trabalho, garantindo autossuficiência, aprimoramento de conhecimentos e mais inovação dentro de empresas”, afirma Maria Beatriz Nogueira, chefe do escritório do ACNUR em São Paulo.
Para André, o reconhecimento do diploma é justamente a oportunidade que se tem, por parte de refugiados e migrantes, de serem vistos não como um fardo, mas sim como uma contribuição positiva para o desenvolvimento local.
“Além do cuidado daquela pessoa como indivíduo, o diploma revalidado é a restauração de parte da sua história como ser humano, além de fazer com que ela seja parte ativa da sociedade da qual ela faz parte. Torna possível que seja uma pessoa que contribui com a economia do Brasil e com o crescimento do país, ao trazer toda essa riqueza e bagagem”, explica.
Revalidação em números
Desde o início da parceria com o ACNUR, em 2016, a Compassive já deu entrada em 464 pedidos de revalidação de diplomas. Ao longo de cinco anos de projeto, 106 diplomas de graduação foram revalidados. Outros 245 processos estão em avaliação por parte das universidades.
ACNUR e Compassiva continuam a atuar juntas no campo da revalidação para garantir que cada vez mais pessoas em situação de deslocamento forçado tenham acesso à regularização de seus documentos e possam se desenvolver no Brasil em plenitude, ao colocar em prática anos de dedicação e estudo. De acordo com uma pesquisa conduzida pela Cátedra Sérgio Vieira de Mello em 2019 sobre o perfil socioeconômico dos refugiados que vivem no Brasilcerca de 34% dessa população tinham ensino superior completo e 25,2% estavam fora do mercado de trabalho, evidenciando o quanto o país perde em não conseguir absorver uma mão e obra e conhecimentos tão qualificados.
Matéria reproduzida - site ACNUR